Cem cruzeiros a mais

Boa tarde, Dickinsonians!

O serviço público no Brasil é criticado por sua intensa burocracia e complexidade. Acredito que muitos já passaram por esta situação: esperar horas em uma fila para resolver algum problema, e quando FINALMENTE chega a sua vez, o atendente simplesmente diz que falta um papel ou documento e que você tem que voltar no dia seguinte. Dia seguinte: outra fila! Outro atendente, outra explicação.

Para ilustrar esta situação de forma cômica, escolhi um texto de Fernando Sabino, escritor e jornalista brasileiro, mais conhecido por seu conto “O Homem Nu”.

Espero que gostem!

CEM CRUZEIROS A MAIS – FERNANDO SABINO

Ao receber certa quantia num guichê do Ministério, verificou que o funcionário lhe havia dado cem cruzeiros e mais. Quis voltar para devolver, mas outras pessoas protestaram: entrasse na fila.

Esperou pacientemente a vez, para que o funcionário lhe fechasse na cara a janelinha de vidro:
– Tenham paciência, mas está na hora do meu café.

Agora era uma questão de teimosia. Voltou à tarde, para encontrar fila maior – não conseguiu sequer aproximar-se do guichê antes de encerrar-se o expediente.

No dia seguinte era o primeiro da fila:
– Olha aqui: o senhor ontem me deu cem cruzeiros a mais.
– Eu?

Só então reparou que o funcionário era outro.
– Seu colega, então. Um de bigodinho.
– O Mafra.
– Se o nome dele é Mafra, não sei dizer.
– Só pode ter sido o Mafra. Aqui só trabalhamos eu e o Mafra. Não fui eu. Logo…

Ele coçou a cabeça, aborrecido:
– Está bem, foi o Mafra. E daí?

O funcionário lhe explicou com toda urbanidade que não podia responder pela distração do Mafra:
– Isto aqui é uma pagadoria, meu chapa. Não posso receber, só posso pagar. Receber, só na recebedoria. O próximo!

O próximo da fila, já impaciente, empurrou-o com o cotovelo. Amar o próximo como a ti mesmo! Procurou conter-se e se afastou, indeciso. Num súbito impulso de indignação – agora iria até o fim – dirigiu-se à recebedoria.

– O Mafra? Não trabalha aqui, meu amigo, nem nunca trabalhou.
– Eu sei. Ele é da pagadoria. Mas foi quem me deu os cem cruzeiros a mais.

Informaram-lhe que não podiam receber: tratava-se de uma devolução, não era isso mesmo? E não de pagamento. Tinha trazido a guia? Pois então? Onde já se viu pagamento sem guia? Receber mil cruzeiros a troco de quê?

– Mil não: cem. A troco de devolução.
– Troco de devolução. Entenda-se.
– Pois devolvo e acabou-se.
– Só com o chefe. O próximo!

O chefe da seção já tinha saído: só no dia seguinte. No dia seguinte, depois de fazê-lo esperar mais de meia hora, o chefe informou-se que deveria redigir um ofício historiando o fato e devolvendo o dinheiro.

– Já que o senhor faz tanta questão de devolver.
– Questão absoluta.
– Louvo o seu escrúpulo.
– Mas o nosso amigo ali do guichê disse que era só entregar ao senhor – suspirou ele.
– Quem disse isso?
– Um homem de óculos naquela seção do lado de lá. Recebedoria, parece.
– O Araújo. Ele disse isso, é? Pois olhe: volte lá e diga-lhe para deixar de ser besta. Pode dizer que fui eu que falei. O Araújo sempre se metendo a entendido!
– Mas e o ofício? Não tenho nada com essa briga, vamos fazer logo o ofício.
– Impossível: tem de dar entrada no protocolo.

Saindo dali, em vez de ir ao protocolo, ou ao Araújo para dizer-lhe que deixasse de ser besta, o honesto cidadão dirigiu-se ao guichê onde recebera o dinheiro, fez da nota de cem cruzeiros uma bolinha, atirou-a lá dentro por cima do vidro e foi-se embora.

Autor:
Fernando Sabino

Crônica do livro “A Companheira de Viagem
(Editora Sabiá, 19725)

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